terça-feira, 18 de maio de 2010

Ortónimo e heterónimos

Como explica em carta a Adolfo Casais Monteiro, Fernando Pessoa sente desde cedo necessidade de criar diversas personalidades poéticas para exprimir diferentes estéticas literárias, chegando ao ponto de atribuir biografias a essas diversas personalidades.
Para além dos numerosos pseudónimos da juventude como e de semi-heterónimos como o prosador Bernardo Soares, as personalidades poéticas de Pessoa incluem o ortónimo (Fernando Pessoa ele próprio) Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
O poeta ortónimo, Fernando Pessoa, apresenta como principal característica a intelectualização na análise do real – seja este o real físico ou as realidades psíquicas decorrentes dessa análise – sendo notória a “dor de pensar” provocada por este tipo de actividade. Recusa o sentimento e manifesta com frequência a frustração decorrente de não conseguir abarcar de forma racional e lúcida a realidade envolvente. Isto leva-o a uma frequente nostalgia da infância como idade da inocência, ou a invejar a inocência e a espontaneidade de personagens ou acções de outrem. Os motivos centrais da sua poesia são a expressão do carácter ilusório de tudo o que o rodeia, a obsessão de ser e de se conhecer, a fugacidade e inefabilidade do momento, a melancolia. O seu estilo é elaborado, marcado pelo raciocínio lógico e por vocabulário ligado ao campo semântico da reflexão – como, adicionalmente, ao da frustração e dor.
Alberto Caeiro, metaforicamente pastor, cujas habilitações literárias não vão além da instrução primária, é o poeta da simplicidade da natureza, do real e do objectivo, dos sentidos por excelência; recusa a intelectualização da poesia por considerar que a relação com o real se efectua apenas através dos sentidos, sobretudo o da visão (não pensa, ou melhor, pensa vendo) – intelectualizar é uma operação que pressupõe falar de si próprio e não da realidade que o rodeia. É um pagão cujo animismo panteísta implica um estatuto de igualdade com os outros elementos da natureza, embora confesse por vezes não ser tão natural como quereria, não resistindo à tentação da abstracção. Utiliza uma linguagem simples, ligada ao real físico (muito particularmente por via do campo lexical da Natureza), oralizante e marcada por vocabulário essencialmente denotativo e ligado à percepção física, em verso irregular que reproduz o simples fluir do pensamento. É um anti-metafísico que aceita o mundo tal qual ele é, sem o questionar.
Ricardo Reis, médico educado num colégio de jesuítas, conhece o latim e o grego e é um poeta de cariz clássico, a nível temático como a nível formal. O seu paganismo é diverso do de Caeiro, na medida em que situa os deuses num Olimpo distante do mundo dos homens, sendo estes sobretudo governados por um Destino a que não podem eximir-se; a constatação da fugacidade da vida e da inutilidade das acções humanas integram-se numa estética epicurista e estóica que o leva a recusar a acção e o desejo, de acordo com um carpe diem de extracção clássica. Tem assim um programa de vida que o leva a “contemplar o espectáculo da Natureza”, embora essa contemplação implique a inevitável comparação dessa Natureza, perene, com a fugacidade da própria existência. O seu estilo é marcadamente clássico, com vocabulário erudito, sintaxe latinizante e frequentes hipérbatos, referências mitológicas e versos equilibrados e cuidadosamente elaborados.

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